ARTIGO: Travesseiro ou Celular. Quem é melhor de conversa?

Sempre fui um entusiasta da tecnologia. Não só como usuário, mas também como desenvolvedor. Desde muito cedo, entendi que os computadores e os softwares são ferramentas para melhorar nosso dia a dia.

Foram muitas as ocasiões, depois de um dia inteiro de trabalho e aulas após o expediente, que levava o laptop para cama e começava a programar. Quem já fez isso sabe. É um momento extremamente desafiador e estimulante e, normalmente, nestas ocasiões, quando olhava pela janela, já estava amanhecendo.

Repare no contexto: Um adulto, cansado depois de um dia inteiro de atividades e compromissos, programando na cama até o amanhecer e tendo que trabalhar e estudar no dia seguinte. Pode dar certo? Claro que não!

Duas palavras são importantes nesse cenário: “Adulto” e “Programando”. Troque por “Criança” e “Jogando” e um desastre maior acontece.

Não é radical interpretar isso como desastre?

Não!

Vamos aos motivos.

Eu levava o laptop para programar. Hoje, para se entreter, não precisamos de um computador. Basta um celular, tablet, SmartTV, videogame… Equipamentos ultra portáteis, ao alcance de qualquer criança e, em muitos casos, sem controle parental (de conteúdo).

Eu estava trabalhando. Tudo bem que desafios profissionais podem ser motivadores, mas não se comparam ao engajamento e iterações promovidas pelas redes sociais de hoje em dia, à magia hiper-realista dos jogos eletrônicos e aos algoritmos programados para manter o usuário o maior tempo possível na tela.

Eu sabia o que estava fazendo (ou achava que sabia…). Mesmo que de uma forma errada, não produtiva no médio e longo prazo, eu tinha um objetivo claro e definido para aquela maratona (diferente de uma criança que, navegando em um mar sem fim, busca o que não conhece e ainda fica à mercê de estranhos).

Eu não dormia. Para essa questão, tanto a criança como o adulto, sofrem. A privação de sono produz efeitos ruins para ambos.

E eu que achava que estava fazendo o melhor, hoje entendo que glamourizar a falta de sono é um erro.

  • “Virei a noite estudando”. Isto não é uma estratégia. Se realmente depender disso, vai tirar uma nota mais baixa ainda.
  • “Enquanto eles dormem eu trabalho” Isto não é receita para o sucesso. O resultado dessa prática é sempre ruim.

As crianças constituem um dos maiores grupos de consumidores de tecnologia. Permitir que crianças e adolescente passem as madrugadas penduradas na internet não é uma forma de fazer seu filho estar “Up to Date” em relação às novidades tecnológicas, antenado no que está acontecendo e adquirindo novos conhecimentos que não tínhamos acesso no passado. É, sim, um erro que os prejudica em diversos aspectos.

O uso de equipamentos eletrônicos pode deslocar o sono, uma vez que não há horário fixo para começar ou terminar sua utilização e seu uso antes de dormir aumenta a excitação fisiológica, emocional e/ou mental.

Associado, e por consequência disto, a privação de sono ou sono de má qualidade na infância e na adolescência traz grandes prejuízos, tais como (entre muitos outros):

  • Prejuízos para memória, atenção e aprendizagem;
  • Comprometimento do sistema imunológico, do desenvolvimento do sistema nervoso central e do desenvolvimento físico e crescimento;
  • Aumento de peso;
  • Dificuldade para regular as emoções e humor.

Em seu livro “Neuropsicologia do Sono: aspectos teóricos e clínicos”, Katie Almondes, coordenadora do Ambulatório do Sono da UFRN, nos informa que “a ocorrência do sono e da vigília varia basicamente em função de dois aspectos: do tempo que passamos previamente nestes dois estados e da hora do dia em que ocorrem” e, desta forma, uma questão central desta discussão (e que precisa ser bem entendida) é o que conhecemos como Ciclo Circadiano.

O Ciclo Circadiano é um ciclo biológico que orquestra diversos processos fisiológicos, comportamentais e cognitivos e é regulado e sincronizado pela luz (ou falta dela) no ambiente.

Nossa retina, ao captar a luz, informa ao nosso cérebro as condições ambientais que estamos inseridos para que ordens sejam dadas para diversos sistemas do nosso corpo. A luz na hora errada confunde nosso cérebro e o faz acreditar que não está na hora de dormir, inibindo, por exemplo, a produção de Melatonina (muitos outros hormônios e neurotransmissores são inibidos ou ativados como, por exemplo: Cortisol, Insulina, Grelina, Leptina, GH, Serotonina, Dopamina, GABA, Norepinefrina, Acetilcolina, Glutamato e Adenosina).

O objetivo agora não é apontar ou explicar os prejuízos de não dormir bem e sim entender por que o uso equipamentos eletrônicos durante a noite atrapalha o sono dos pequenos (e dos adultos também).

Podemos complicar ou simplificar a resposta.

A resposta complicada (para quem gosta de detalhes…): Exposição à radiação eletromagnética em frequências compreendidas entre 400nm e 700nm, sendo a mais prejudicial a faixa de ondas compreendida entre 450nm e 500nm.

A resposta simples (para quem está a fim de entender e resolver o problema): Exposição à Luz, sendo a mais prejudicial a Luz Azul.

A exposição à luz durante a noite dessincroniza o ciclo circadiano e prejudica a regulação dos nossos hormônios e neurotransmissores, especialmente a luz azul emitida pela maioria dos equipamentos eletrônicos. Dessincronizar o ciclo circadiano significa alterar os padrões de sono e vigília, ou seja, faz a criança ou o adolescente ficar acordado na hora que tem que estar dormindo e sonolento e disperso na hora que tem que estar acordado. Sem ânimo, cansado, mal-humorado e com o cérebro em “marcha lenta” (hormonal e neuroquimicamente desregulado) todos os prejuízos já citados veem à tona.

Estudos comprovam que a exposição à luz emitidas pelos dispositivos eletrônicos e a excitação provocada pelo seu uso provoca no corpo alterações hormonais e neuroquímicas que prejudicam, entre muitas outras coisas, um sono de qualidade. O acesso aos equipamentos eletrônicos, na hora de dormir ou na hora anterior, diminuiu a chance de um sono de qualidade. A exposição à luz de equipamentos eletrônicos duas horas antes de se deitar bloqueia os níveis ascendentes de melatonina em quase 25%. Comprado a leitura de um livro, o uso de tablets à noite reprime a liberação de melatonina em mais de 50%.

Como consequência dessas práticas acabamos por experimentar uma redução significativa na média de horas de sono quando usamos esses equipamentos antes de dormir.

Devemos, como pais, responsáveis ou profissionais da saúde, colocar nossa atenção nesta questão. O primeiro passo pode ser dado adotando rotinas e comportamentos simples que não necessitam de investimentos.

Isso dá para fazer sem nenhuma dificuldade:

  • Defina horários para dormir e ensine a criança a usar a cama para isso. Nada de ficar rolando para lá e para cá;
  • Adote uma rotina pré-sono de qualidade que traga conforto e segurança para a criança;
  • Substitua os celulares, tablets, videogames, TVs e computadores por conversas, leituras e histórias;
  • Coloque os equipamentos para carregar longe da cama.

Por fim, ensine seu filho a conversar como travesseiro e não com o celular!

Por Lysio Séllos, doutor em Engenharia, Psicólogo e Engenheiro de Segurança. Desenvolve pesquisas e trabalhos em temas relacionados à Gestão de Projetos, Gestão de Riscos Psicossociais, Psicologia do Sono e Transformação Digital na Área da Saúde.

Para saber mais, você pode consultar:

ALMONDES, K. M.; de. Neuropsicologia do Sono: aspectos teóricos e clínicos. Pearson, São Paulo. 2017

DUBE, N., KHAN, K., LOEHR, S., CHU, Y., VEUGELERS, P. The use of entertainment and communication technologies before sleep could affect sleep and weight status: a population-based study among children. International Journal of Behavioral Nutrition and Physical Activity. v.14, 2017. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5517950/. doi: 10.1186/s12966-017-0547-2. Acessado em: 10/08/2023.

FULLER, C, LEHMAN, E, HICKS, S, NOVICK, MB. Bedtime Use of Technology and Associated Sleep Problems in Children. Glob Pediatr Health. v.4, 2017. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5669315/. doi: 10.1177/2333794X17736972. Acessado em 12/08/2023.

SCIO EDUCATION. O Impacto da Tecnologia no Sono das Crianças. Scio Education. 2019. Disponível em https://scioeducation.com/artigos/o-impacto-da-tecnologia-no-sono-das-criancas/#:~:text=Os%20dados%20sugerem%20que%20o,que%20as%20crian%C3%A7as%20est%C3%A3o%20recebendo. Acessado em: 08/08/2023

WALKER, M. Por que nós dormimos: A nova ciência do sono e do sonho. Intrínseca, Rio de Janeiro. 2018

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